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“Ser lixo”. Assim se intitula esta edição. Ser um objecto desprezável ou inutilizável para o contexto em que baseia a sua existência. Ser alguém cuja função se sente ameaçada, incomportável ou indefinida.

Mas fosse o objecto reutilizável para uma nova função, ou a função adaptável a um novo contexto, e o conceito seria diferente. Então, fosse a arquitectura apta a responder a uma nova necessidade ou a um novo momento de tempo e de espaço como aquele em que vivemos, e deixaria de ser “lixo” em tempos de crise? Afinal, “ser lixo” não é senão uma invenção do homem, através da sua vontade de assim o classificar quando a consciência não conhece outra possibilidade de acção. Na natureza não há lixo.

Por uma razão ou outra, ao longo do tempo a arquitectura cresceu a partir de um debate de ideias, de uma luta de estilos e engenhos, que nós, estudantes e futuros arquitectos, ajudámos a manter. Ajudámos a criar formas de sucesso e de fracasso à luz da imagem ou do texto. Ajudámos a hierarquizar a sociedade, o espaço e a história, a favorecer a materialidade e a originalidade de cada criação e, sobretudo, a tornar a arquitectura um exercício dependente de um contexto político ou económico, que em tempos de crise a despreza ou suspende. Se utilizarmos a teoria de Alain de Botton, diremos que “procurámos o sucesso errado”1.

Mas não é por isso que a arquitectura se tornará agora lixo, ou não teria sido construída mesmo antes da descoberta do seu conceito, nem que será unicamente dependente de políticas ou economias, ou não teria sido criada para proteger o homem das intempéries ou do frio. Então o que nos está a escapar? 

Se a arquitectura é e foi, desde sempre, uma resposta de adaptação do homem às condições do espaço e do tempo em que vive e que em períodos de ostentação se tornou grandiosa e símbolo de um modo de vida, também em tempos de crise se adaptou à procura das respostas mais urgentes para a subsistência da população e recorreu apenas aos meios que dispunha em seu redor. Isto porque as crises são cíclicas, e até hoje a arquitectura sobreviveu a todas. Veja-se o recente século XX, em que a arquitectura foi racionalizada para responder às urgências sociais dos períodos pós-guerras e crises económicas. Os factores de crise foram transformados em desafios e os arquitectos tornaram-se intervencionistas directos na construção das soluções. 

Então, mais uma vez, não será tempo de adaptar a arquitectura, estender os seus horizontes e repensar o espaço e o tempo em que ela (sobre)vive? De a redescobrir para além do discurso da “imagem” e do “espectáculo”, da individualidade ou do ícone, ou como nos sugere Ole Bouman2, de a integrar na criação de soluções “para uma crise que afinal nós próprios ajudámos a criar, e para as quais somos as pessoas indicadas”.

Mas não poderemos explorar novas receitas de ovos sem antes lhes partir a casca. Também para a arquitectura é preciso abrir novos futuros, torná-la mais flexível e contextualizada. Falamos constantemente da transdisciplinaridade da arquitectura mas continuamos a associá-la ao comodismo da cadeira e do estirador do atelier. Pensemos para lá do convencional. Está na altura de ser criativo na utilização dos recursos disponíveis, de trabalhar directamente com aqueles que conhecem o espaço, o utilizam e sabem do que ele precisa. 

A tarefa passa então por nós, estudantes de arquitectura. Se há um espaço para reflectir sobre o papel da arquitectura contemporânea e encubar as soluções que ela necessita, esse espaço é a Escola. Cabe-nos a nós exigir-lhe que nos ajude a partir a casca. Que nos forneça não só as ferramentas que permitam o saber-fazer, a avaliação crítica e a reflexão, mas também a liberdade de acção que precisamos para alargar as nossas perspectivas e criar estratégias alternativas àquilo que erradamente se espera de ser arquitecto no século XXI. Que rompa com o modelo convencional do “estúdio de arquitectura” desenvolvido em torno de programas já estafados, que abdique da super-valorização da “intuição” e do culto da genialidade em favor da urbanidade e do trabalho de campo, do espírito de colaboração com a colectividade que nos rodeia e não com a individualidade da sala de aula. Enfim, que nos confronte com os problemas da arquitectura do quotidiano, onde a obra-prima cede lugar à criatividade do vulgar, onde arquitecto e utilizador trabalham para um mesmo fim.

Tal como defende Bouman, a arquitectura pode e deve ter um papel mais activo nas sociedades contemporâneas. As respostas podem ser pequenas, mas toda a arquitectura criada para contribuir para o bem-estar de uma comunidade é sempre válida e generosa. E não tem necessariamente de ser fechada nas comodidades do mundo próximo que nos rodeia e que pensamos conhecer e controlar. Novas formas de pensar e construir a arquitectura começam já a ser exploradas mundo fora por um largo grupo de arquitectos, que, lançando mão aos recursos locais e às necessidades urgentes ajudam a criar estruturas que melhorem o quotidiano de uma comunidade, sejam abrigos para dormir, apoios sanitários, espaços de convivência ou de brincar. Porque, como Vera Sacchetti3 referia a propósito do papel dodesign na sociedade contemporânea: “Já não desenhamos só cadeiras e candeeiros, mas desenhamos por vezes as únicas escolhas das pessoas que não têm escolha”, e se essa escolha responder de forma criativa às suas necessidades, seja cá dentro ou lá fora, então será esse o nosso sucesso.

Afinal ser lixo pode significar ser renovável num sítio ou reutilizável noutro, se fugir à rotina e repensar as suas circunstâncias. Haverá sempre necessidade de arquitectos que acreditem que uma mudança social pode ocorrer a partir do desenho e da vivência do espaço. Sem prescindir da arquitectura enquanto objecto de múltiplas dimensões, cabe-nos a nós estender o seu significado, e acreditar que a crise é o melhor momento para partir a casca. |


1 Alain de Botton. A Kinder, Gentler Philosophy of Success. Apresentação vídeo TED Talks. (Jul. 2009). [Consult. Nov 2011]. Disponível em http://www.ted.com/talks/lang/en/alain_de_botton_a_kinder_gentler_philosophy_of_success.html 

 

2 Ole Bouman. Introduction. in Architecture of Consequence. Dutch Designs on the Future. [Em linha]. Rotterdam : NAi Publishers, 2010, p. 4-9. ISBN 9056627260 [Consult. Nov. 2011]. Disponível em www.architectureofconsequence.nl/mmbase/attachments/822239/Introduction_OleBouma_ArchitectureOfConsequence_klein.pdf

 

3 Vera Sacchetti. Design Crusades: Considering the Shortcomings of Social Design. in PRESENT TENSE: THE 2011 D-CRIT CONFERENCE, New York, May 4th. [Em linha]. (20 Maio 2011). [Consult. Nov. 2011] Disponível em http://verasacchetti.net


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